O pai que comia demais

Permitam-me que vos entretenha falando-vos da minha experiência recente nesse tipo de eventos solarengo chamado: festas de aniversário de crianças.

Quis o destino que marcássemos presença num evento do género no passado fim de semana. Malta porreira, crianças com fartura, festa em domicílio e siga o convívio. Os meus mini discípulos portaram-se bem, o mais velho comendo toda a fruta a que conseguiu, enquanto protestava com os anfitriões pela falta de bananas na mesa e tentava roubar todos os brinquedos a conseguia deitar as mãos. O mais novo, fruto do seu estado miniatura, deliciava pessoas a rir-se, a babar-se e a conseguir dormir uma sesta num quarto regularmente arrombado por grupos de crianças aos gritos.

Já o meu comportamento…
Digamos que, entretido pela comida disponível na mesa, fiz aquilo que muitos pais devem fazer em festas do género, comer e tentar sobreviver. Estando a cumprir bem o programa de treino, a minha vista deparou-se com uma tarte de chocolate com framboesas que se ria para mim, com um boneco do Mickey lá espetado no meio. ‘Espero bem que não trabalhes como segurança de bolos, jovem rato, pois vais falhar’, pensei eu lambuzando-me.

Pumba, avanço sem medo e estreio a coisa com uma fatia digna desse nome – a tarte era boa e achei por bem recomendá-la à senhora que teima em acompanhar-me nestes eventos, a quem levei uma nova fatia, atirando-me ela em troca o nosso mais pequeno cidadão, que agarrei com uma só mão, merecendo uma salva de palmas.

Uma hora e tal mais tarde, o momento pré ‘vamos-lá-todos-embora-que-já-se-vai-fazendo-hora’ a que se chama cantar os parabéns. Os convidados aproximam-se, as crianças rodeiam a mesa e vejo o pai do aniversariante super atarefado, pensei eu que estava a colocar as velas.

Mas eis que vejo, a tal tarte de chocolate era nada mais, nada menos que O BOLO DE ANIVERSÁRIO que um qualquer animal já tinha encetado tirando duas generosas fatias que eram agora ‘substituídas’ na forma por umas fatias de cheesecake convocadas à última hora quais figurantes de segunda. Tento desculpar-me mentalmente ‘Epá, aquilo não tinha aquelas velas postas, isso não se faz a um adulto com fome…’

À minha volta só via olhares reprovadores de pais a sondar a sala, mas acreditava que ninguém tinha dado por mim a cometer tal atrocidade, sou muito rápido no arranque rumo a fatias de bolo. A minha preocupação foi ver se não tinha migalhas de chocolate a incriminarem-me – se for preciso, lambe-se a camisola. Começa a cantoria e sinto que estou safo, os miúdos estão atordoados pelo açúcar e os pais embevecidos pelo momento deixam passar tudo.

Sobrevivi ainda que a vergonha, essa viva para sempre ou, pelo menos, até ao próximo bolo de aniversário infantil.

Morfeu por meia hora

Banho tomado, refeição providenciada, últimas palavras de ‘Se for preciso alguma coisa liga. Aliás mesmo que ainda não seja preciso, mas te pareça que possa vir a ser, liga’ e pronto, eis-me sozinho em casa com o micro-artista que, com menos de um mês, ainda não é propriamente campeão da interactividade.

Era suposto estar em ambiente descontraído, gatos a dormir certamente rindo-se do pouco que outra gente dorme, criança a dormir e eu a teclar furiosamente, mas com elegância.

Eis que, passados 10 minutos, surge de um certo quarto um certo grunhido que se sobrepõe a um certo white noise, dito milagroso para lançar bebés para o espaço sideral do sono. É ele.

Lá vou eu, pensando que terei que mostrar na próxima hora o porquê de ser vice-campeão mundial de embalanço de mini-artistas, apenas perdendo para um iraniano que certamente esfregou nas mãos óleo de papoila para ter conseguido resultados melhores que os meus.

Mas, chegado ao quarto, vejo que ainda não estamos nessa fase. No meio da penumbra, há uns olhinhos que eu já vi, em ponto grande e bastante menos inocentes, na cara de gente que abusou de cenas que se fumam – está meio cá, meio lá.

Opto pela solução de conforto, ajeita-se o lençol, induz-se em voz baixa ‘ Quando eu for velho, mudas-me tu a fralda, estás a ouvir?’ e eis que, ao ajeitar a chucha, uma mãozinha me agarra o dedo com força.

Um dedo meu penso eu, à escala, é para ele como um adulto a segurar uma salsicha de bom porte, mas não tiremos a beleza à cena com analogias idiotas. Parece começar a acalmar-se e eu estou numa posição quase ao estilo breakdance.

Um gato passa por ali e juro que se ri, enquanto se deita lá ao fundo na cama. Não faz mal, estou acima disso tudo, durante os próximos quinze-vinte minutos sou uma espécie de Morfeu. Ou o meu dedo é uma espécie de Morfeu. E eu não conheço nenhuma salsicha que seja uma espécie de Morfeu.

E dás por ti a pensar nos 50 mil lugares comuns que já conhecias por via dos teus amigos que são pais e percebes que é como falar de certas obras de arte, como a Guernica de Picasso, cuja grandiosidade só compreendes verdadeiramente quando estás frente a frente com elas.

Mas, diga-se de passagem, para que isto não acabe num tom demasiado lamechas, eu também nunca vi uma salsicha parecida com a Guernica.